
O software de reconhecimento facial é uma tecnologia desenvolvida com o objetivo de identificar potencial criminoso ou foragido através de medições iniciais de face, por grau de semelhança, a determinado perfil de rosto.
A utilização é frequentemente atrelada a um sistema de big data, em que se coleta e processa grande quantidade de dados em tempo real, funcionando como uma espécie de biometria da face, tendo em vista alguns pontos do rosto e seu distanciamento e sua assimetria
Implementada em determinados estados brasileiros, essa tecnologia trouxe, em seu bojo, euforias e incertezas.
Nesse sentido, tendo o âmbito da criminalidade aumentado de modo preocupante em certas regiões, parecia ser a solução ideal para facilitar a busca por cidadãos suspeitos de atos criminosos, foragidos da Justiça e, inclusive, por pessoas desaparecidas. O software consegue cruzar dados biométricos, como impressões digitais e imagens de câmeras de reconhecimento facial para auxílio na instrução das investigações.
Porém, no decorrer de prisões realizadas com o uso de reconhecimento facial, conforme pesquisa realizada pela Rede de Observatórios da Segurança em 2019, foi perceptível a ocorrência de falhas, discriminação racial e falta de transparência do software, ou seja, erros a tal ponto grosseiros que geraram prisões indevidas, criando grandes constrangimentos, possivelmente irreversíveis, na vida de pessoas que não estavam relacionadas com os crimes em questão.
Desta forma, no impacto negativo da tecnologia observaram-se alguns dados obtidos pela pesquisa a respeito da proporção de prisões efetuadas com o uso de reconhecimento facial em 2019 no Brasil.
No conjunto, em 66 casos verificou-se informações sobre sexo: 87,9% dos suspeitos foram homens e 12,1% , mulheres. A idade média do grupo foi de 35 anos. Em relação aos casos em que havia informações sobre raça e cor, ou quando havia imagens dos abordados (42 casos), 90,5% das pessoas eram negras e 9,5% eram brancas. No que se refere à motivação para abordagem, chama atenção o grande volume de prisões por tráfico de drogas e por roubo, sendo 24,1%, cada uma.
No mínimo curioso, por assim dizer, é notável a preferência do software tecnológico para apurar crimes de tráfico e roubo, deixando de lado, por exemplo, os denominados crimes de colarinho branco, que também possuem dano gravoso para a sociedade em geral.
Essa sistemática preferencial discriminatória acaba gerando desigualdade, além de violar direitos humanos e garantias individuais de um Estado Democrático, que consolidou princípios fundamentais na sua Constituição promulgada em 1988.
Tendo-se em vista o princípio da presunção de inocência e do nemo tenetur se detegere (em que alguém não é obrigado a produzir prova contra si mesmo), a utilização da tecnologia sem parâmetros objetivos que respeitem os limites de tais princípios e garantias individuais traz insegurança jurídica e prejuízo para a justiça criminal brasileira.
A falta de fiscalização e protocolos para garantir a segurança de dados pessoais coletados da população é outro fator que coloca in dubio a aplicabilidade em massa do reconhecimento facial.
No cenário brasileiro, o anteprojeto sobre tratamento de dados pessoais na área criminal (LGPD Penal) foi entregue à Presidência da Câmara dos Deputados em novembro de 2020. A LGPD Penal prevê a obrigatoriedade de elaboração do relatório de impacto à proteção de dados pessoais para tratamento de dados pessoais sensíveis, sigilosos, ou em operações que apresentem elevado risco aos direitos fundamentais, liberdades e garantias individuais dos titulares de dados.
Nos termos da Exposição de Motivos do Anteprojeto da LGPD Penal, a utilização de dados pessoais para fins de segurança pública e persecução penal demanda um regime jurídico diferenciado diante dos interesses conflitantes a serem equalizados: por um lado, é preciso harmonizar os deveres do Estado na prevenção e na repressão de crimes, protegendo a ordem pública; por outro, é preciso assegurar a observância das garantias processuais e das prerrogativas fundamentais dos cidadãos submetidos a investigações criminais.
Importante ressaltar que, enquanto o software ainda é novidade no Brasil, em outros países há declínio da utilização e legitimidade dessa tecnologia, como nos Estados Unidos, Suécia e Inglaterra, diante de falhas cometidas pelo sistema. Conforme apontado pela Universidade de Essex, foi identificado que o reconhecimento facial em Londres teve a mera taxa de 19% de sucesso nos meses de junho de 2018 a fevereiro de 2019.
Desse modo, considerando que, no reconhecimento facial, o algoritmo não identifica o rosto, mas sua similaridade com parâmetros faciais, cabe frisar que a atualização tecnológica não merece grau de credibilidade absoluto.
Conforme mencionado, existem falhas gritantes que podem atingir a sociedade, acometer um inocente e oprimir classes sociais menos favorecidas de forma discriminatória, bem como coletar dados pessoais em massa da população sem o mínimo de transparência ou prestação de contas.
Destaque-se que, atualmente, algumas empresas utilizam o programa de reconhecimento facial, denominado de “br-safe“, como modo de tentar identificar indivíduos que já praticaram algum crime de roubo, furtos corriqueiros e outros tipos de crimes patrimoniais.
No entanto, tais empresas não trazem à baila da mesma problemática acima apontada, vez que, utilizam o software apenas como forma de prevenção em seus estabelecimentos, ou seja, o sistema é utilizado como ferramenta de alerta ao setor de segurança patrimonial e, assim, caso ocorra alguma prática delitiva, reforça-se a vigilância, já tendo conhecimento do histórico criminal, para acionar a Autoridade Policial.
Isso posto, conclui-se que na utilização do reconhecimento facial é imprescindível regulamentar a observância de direitos e garantias individuais, bem como implementar parâmetros legais a fim de se estabelecerem limites à utilização da ferramenta, para que não traga prejuízo para a sociedade, segurança pública e justiça brasileira, nem mesmo para as empresas que utilizam do referido programa.
Artigo elaborado pelo advogado Lucas Finholdt e o bacharel em Direito Rafael Lourenço, sob a coordenação da advogada Camila Basanta, sócia responsável pela equipe da área cível.