A sociedade mudou ao longo do tempo e com ela o conceito de família. A noção de família, no modelo familiar romano, constituída por um homem e uma mulher que geravam filhos biológicos, perdurou por toda a antiguidade e foi se espalhando no mundo ocidental onde o matrimonio era condição indispensável para gerar filhos aptos a receberem um nome e que pudessem aquiescer à herança familiar.

Contudo, ao longo da história ocorreram muitas mudanças que resultaram em novos fenômenos sociais, já que a família é um conceito extremamente mutável, como disciplina o honorável Venosa (2021, p.28), “a célula básica da família, formada por pais e filhos, não se alterou muito com a sociedade urbana. A família atual, contudo, difere das formas antigas no que concerne às suas finalidades, composição e papel de pais e mães”.

Em meio à esta evolução a escola tornou-se mais participativa na formação dos cidadãos, o que antes era papel exclusivo dos pais. A industrialização e a urbanização, também trouxeram mudanças na formação das famílias com a redução drástica do número de filhos, pois, a mulher deixou de ser a “mãe e esposa” e passou a disputar o mercado de trabalho com os homens, concorrendo com ele para o sustento da família.

Interessante dizer que a igualdade jurídica conquistada pelas mulheres trouxe a possibilidade de elas serem capazes independente da anuência dos pais ou marido, o que permitiu tantas modalidades familiares existentes hoje.

Quanto ao estado de filiação, este também sofreu mudanças. Antigamente apenas os filhos nascidos na constância do matrimônio eram reconhecidos pela família e tinham direito à filiação. Já aqueles concebidos fora do casamento eram classificados como ilegítimos, ou “bastardos”, sem possuírem qualquer reconhecimento jurídico, deixando em evidência que a qualidade de filho estava diretamente ligada ao estado civil dos pais.

Esta distinção ao longo do tempo, com a evolução histórica da sociedade, ganhou um novo nome, passou a se chamar de D I S C R I M I N A Ç Ã O, e evidenciou a necessidade de mudanças legislativas para proteger e preservar direitos importantes da personalidade como o nome, estado de filiação, por exemplo, sem mencionar os direitos hereditários.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, houve uma evolução no pensamento cognitivo sobre o estado de filiação e seu reconhecimento, consagrando a igualdade sem distinção entre filhos havidos ou não dentro da sociedade matrimonial.

Atualmente a família é estruturada e constituída das mais variadas formas e padrões, tornando ultrapassada a noção de que a família é baseada apenas por vínculos genéticos, biológicos e decorrentes do casamento civil. As constantes transformações na organização familiar demandam um novo olhar sobre a forma de interpretar o Direito de Família e as relações paterno-materno-filiais.

Com essa reorganização do Direito de Família, a socioafetividade vem sendo reconhecida como formadora do vínculo de paternidade e/ou maternidade. Tal instituto passou a ser objeto de discussão doutrinária e jurisprudencial no Brasil, o que culminou com seu reconhecimento pelo Superior Tribunal Federal, no recurso extraordinário julgado pelo Ministro Luiz Fux, o qual entendeu que:

Recurso Extraordinário a que se nega provimento, fixando-se a seguinte tese jurídica para aplicação a casos semelhantes: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais” (STF –ED RE: 898060 SC –SANTA CATARINA, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 17/05/2019, Tribunal Pleno, Data  de Publicação: DJe-113 29-05-2019)

Neste ínterim, trata-se do conceito e da evolução da multiparentalidade na seara do direito brasileiro, que nada mais é do que a formação de famílias com base na afeição que as pessoas têm umas pelas outras, reconhecida e aceita pelo Supremo Tribunal Federal, que muitas vezes se sobressai às relações meramente biológicas.

Conceito que avança no ordenamento jurídico, a multiparentalidade surgiu como possibilidade de remediar a indagação sobre qual estado de filiação prevalece, filiação biológica ou a afetiva. A tese surgiu quando se percebeu que juridicamente ambas as filiações eram possíveis, a qual consiste na possibilidade de uma pessoa ter múltiplos pais, ou seja, mais de um pai ou mais de uma mãe no assentamento do registro civil, independente do vínculo genético. Em outras palavras, significa, legalmente, conferir ao genitor biológico e/ou afetivo a legitimidade aos princípios da dignidade humana e afetividade para, dessa forma, manter os vínculos parentais.

Tal alternativa tinha como objetivo garantir direito ligado a personalidade, no que toca, especificamente, o direito de ter o nome. Nesse sentido, Garcia e Borges afirma: “A multiparentalidade caracteriza-se pela possibilidade de a pessoa ter em seu registro de nascimento mais de um pai ou mais de uma mãe” (GARCIA; BORGES, p.6).

“A multiparentalidade deve ser entendida como a possibilidade de uma pessoa possuir mais de um pai e/ou mais de uma mãe, simultaneamente, produzindo efeitos jurídicos em relação a todos eles, inclusive, ao que tange o eventual pedido de alimentos e até mesmo herança de ambos os pais.”. (ZAMATTARO apud LIGUERO. 2015, p.15).

Para melhor se entender o conceito de multiparentalidade, é necessário, primeiramente, analisarmos o conceito de paternidade socioafetiva. Através da ideia ultrapassada da constituição familiar formada por laços genéticos, biológicos ou casamento civil, passou a prevalecer os direitos dos indivíduos, dando início ao reconhecimento das relações interpessoais existentes na sociedade, reconhecendo o vínculo a partir das relações afetivas.

Essa coexistência de vínculos biológicos e afetivos é essencial e obrigatória como forma de preservar os direitos fundamentais de todos os envolvidos, levando em consideração a paternidade como fruto do nascimento mais emocional e menos fisiológico.

Em 2012 tivemos uma decisão inédita, onde o E. Tribunal de Justiça de São Paulo deferiu pedido para acrescentar na certidão de nascimento de jovem de 19 anos o nome da mãe socioafetiva, sem ser retirado o nome da mãe biológica:

EMENTA: MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da Maternidade Biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família. Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes -A formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Recurso provido.” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, 2012). (TJ-SP –APL: 64222820118260286 SP 0006422-26.2011.8.28.0286, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 14/08/2012, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/07/2012)

Coloca-se, assim, a afetividade e a convivência como elemento definidor da constituição familiar em detrimento da consanguinidade, dando-se valor e lugar ao afeto, fazendo as vezes de direito fundamental.

Dito isso, cabe ressaltar então que a multiparentalidade é uma consequência da filiação socioafetiva, seja ela como for.

A multiparentalidade se destaca por ser a existência conjunta de múltiplas relações familiares e sua existência, irrevogável e gerar direitos e obrigações filiais recíprocos. Se processa mediante requerimento administrativo feito direto ao cartório civil, sem a necessidade de ações judiciais, se o filho for maior de 12 anos, que deve conter a anuência de todos os envolvidos, ou seja, deve ter a concordância dos pais biológicos e do pretenso filho afetivo, conforme determinado pelo Provimento 63 do CNJ.

Após a procedência do pedido de filiação socioafetiva, a certidão de nascimento passa a contar com pais e avós biológicos E socioafetivos o que assegura o princípio da paternidade responsável como efeito dessa filiação, ambos os pais participam de maneira efetiva na vida do filho, contribuindo por igual no sustento e educação.

Este fenômeno só traz benefícios para as partes envolvidas, sendo o efeito jurídico imediato a filiação multiparental e o efeito jurídico futuro a ampliação do direito sucessório.

A Carta Magna veda qualquer discriminação entre os filhos, sejam biológicos, adotados ou socioafetivos, consagrando a igualdade de direitos e deveres na paternidade/maternidade.

Os filhos socioafetivos têm exatamente o mesmo direito sucessório que os biológicos, todas as normas sucessórias são aplicadas de maneira igual aos filhos, sem discriminação. O direito por igual à herança pode ser considerado como o cumprimento ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais do indivíduo.

Depois de todo o exposto, você, leitor, pode estar se perguntando: “esse conceito não se confunde com a adoção?”

A resposta é simples: Não. Na adoção, a filiação anterior é apagada dos registros do indivíduo, ou seja, este passa a ter somente os dados dos adotantes como seus ascendentes em seus assentamentos registrais. Pois, na adoção, a intenção é constituir um novo vínculo familiar, vez que o vínculo anterior fora rompido por qualquer motivo.

Já na multiparentalidade, ocorre a coexistência síncrona do vínculo paterno e/ou materno, exercido por mais de uma pessoa, com toda sua extensão em direitos e obrigações.

O modelo de família atual tem como base a harmonia de vida e afeto que existe entre os seus membros. Diante desse modelo, pode-se afirmar que o direito de família, no que tange a sua função de regulamentar as relações familiares, também sofreu transformações advindas da evolução social, reforçando sua efetividade perante a sociedade, vez que se mantém dentro do contexto da realidade das famílias brasileiras e afastando, dessa forma, a possibilidade de se tornar arcaico.

Conclui-se então que doutrina e jurisprudência andam lado a lado no sentido de que o ponto determinante da paternalidade, aquilo que traduz o real significado de família, é o afeto construído entre pais e filhos.

Todavia, não existe uma fórmula que se aplique à todas as relações humanas, pois são complexas, fazendo com que o direito esteja em constante evolução para dar respostas jurídicas à sociedade moderna.

Por restar claro que a verdadeira relação entre pais e filhos não se resume somente ao simples vínculo biológico, a filiação socioafetiva obteve um ambiente de extrema relevância dentro do ordenamento jurídico brasileiro, passando a predominar em grande número de decisões judiciais, sobrepondo-se à filiação biológica.

Dessa forma, o instituto da multiparentalidade surgiu como uma consequência do reconhecimento da filiação socioafetiva, representando, com a finalidade de conciliar a socio afetividade dos entes familiares com a verdade biológica.

Embora o afeto seja importante nas relações familiares, não se pode negar a verdade biológica do indivíduo, afinal de contas ela também faz parte do ser humano como sua própria identidade.

Por esse motivo a Multiparentalidade pode ser considerada um instrumento de igualdade entre as filiações, e esse instituto tem como finalidade proteger e garantir os direitos das novas formações familiares, transportando fatos para a realidade jurídica, fazendo valer os direitos de todos os indivíduos.

Rafael Franco Moreira Lourenço é estudante de Direito e estagiário na área Cível Empresarial do escritório. O artigo foi elaborado com supervisão da advogada Camila Hellwig Basanta.