
Segundo pesquisa realizada em maio de 2022 pela Associação Brasileira de Atacadista e Distribuidores (ABAD), o setor atacadista e distribuidor brasileiro apresentou um crescimento de 7,1% no ano de 2021, com um faturamento estimado em cerca de R$ 308,4 bilhões. Nesse mesmo ritmo, em março de 2021 o mercado varejista cresceu aproximadamente 18% em relação ao mês de março do ano anterior, conforme apontou o estudo realizado pelo Índice Cielo do Varejo Ampliado (ICVA) em abril deste ano.
Com o aumento das vendas no mercado do varejo e atacado, o fluxo de pessoas nas lojas cresce na mesma proporção e, junto aos clientes interessados, surgem também os furtantes. Estima-se que somente no ano de 2021 o mercado de varejo perdeu cerca de R$ 24 bilhões em virtude de furtos e roubos.
A principal ferramenta utilizada por grandes redes de venda no combate e prevenção de furtos é a segurança privada, serviço geralmente prestado por empresas terceirizadas que são especialistas no segmento de segurança patrimonial.
Aqui, no escritório Coelho de Oliveira Advogados, lidamos diariamente com ocorrências dessa espécie e sabemos que tais situações devem ser conduzidas com extrema responsabilidade pelo agente da segurança privada. Dependendo de como é realizada a abordagem do suspeito de furto, a ação pode tanto prevenir perdas quanto culminar em uma ação por danos morais em desfavor da empresa. É por essa razão que compreender os limites legais da segurança privada é tão importante para corporações que visam proteger, além do seu patrimônio, a sua imagem corporativa.
O principal texto legal presente no ordenamento jurídico brasileiro, que dispõe acerca das normas relacionadas às atividades de Segurança Privada – que não aquelas atribuídas à segurança de estabelecimentos financeiros (Lei 7.104/83) – está inserido na Portaria DPF nº 3233/12. O documento prevê a atuação da segurança privada em diversos ramos específicos, como a segurança pessoal e o transporte de valores.
A atividade que nos interessa está prevista no art. 1º, §3º, I desta portaria e descreve a chamada vigilância patrimonial, definida como “a atividade exercida em eventos sociais e dentro de estabelecimentos, urbanos ou rurais, públicos ou privados, com a finalidade de garantir a incolumidade física das pessoas e a integridade do patrimônio” (BRASIL, 2012).
A portaria DPF nº 3233/12 disciplina a atividade das empresas que atuam no ramo da segurança privada, mas é muito vaga no que diz respeito aos direitos que possuem os vigilantes para defesa do patrimônio em detrimento dos demais cidadãos.
Diante da ausência de uma legislação específica capaz de definir os limites legais da atuação do vigilante, o que resta para aqueles que possuem o dever contratual de proteger o patrimônio é buscar abrigo em princípios e dispositivos de legislação geral que possam, de maneira subsidiária, ampliar sua legitimidade para atuar em diferentes contextos na prevenção e repressão de crimes como o furto.
A excludente de ilicitude da legítima defesa, por exemplo, é um dos fundamentos mais abrangentes que respaldam legalmente o uso da força por agentes de segurança, e está prevista no art. 25 do Código Penal da seguinte forma: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (BRASIL, 1940). Esse dispositivo, embora não esteja presente em nenhuma legislação especial, garante amparo legal ao segurança em diversas situações que se fizer necessário a utilização da força para coibição de crimes.
o entanto, questões como a legítima defesa são muitas vezes subjetivas, não sendo possível definir com precisão as fronteiras entre este instituto e uma agressão desproporcional cometida pelo segurança. Por essa razão que, além de analisar a legislação, é preciso compreender bem quais as tendências jurisprudenciais que incidem em situações dessa natureza e, a partir disso, identificar os critérios utilizados pelo judiciário para definir o mérito da conduta exercida pelos profissionais da segurança.
Um estudo realizado pelo Doutor em Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), Cleber da Silva Lopes, publicado em 30/08/2017, examinou os limites legais dos agentes da segurança privada no tocante a questionar, usar a força e dar voz de prisão, a partir da análise de 135 acórdãos que julgaram as consequências de ações de seguranças particulares que questionaram pessoas, usaram força física e/ou realizaram prisões. Os acórdãos estudados foram proferidos pelos Tribunais de Justiça de São Paulo (84) e do Paraná (51) entre os anos 2010 e 2012.
Na primeira tabela, extraída do estudo do autor acima referenciado, foram analisados 85 acórdãos que julgaram processos relacionados ao abuso do uso da força por seguranças. A maioria dos processos tramitava na esfera civil (89%) e são demandas em que os recorrentes alegavam danos morais ocasionados pelo modo como os seguranças utilizaram a força física. Nestes processos, o uso da força foi considerado ilegal em 53 dos 76 acórdãos examinados, mais de dois terços dos casos estudados.
Os processos criminais nos quais os recorrentes alegaram uso abusivo de força por seguranças são minoria entre os acórdãos analisados pelo autor, apenas 11%. Nestes casos, todavia, o uso da força foi considerado legal em quase todos os processos, havendo a ocorrência de apenas uma decisão em sentido contrário.
Em que pese os resultados obtidos dos processos criminais – com a ocorrência de apenas uma situação em que a conduta do vigilante foi caracterizada como sendo ilegal – os acórdãos proferidos na área cível demonstram que a legitimação do uso da força pelos tribunais é a exceção e não a regra, razão pela qual, atitudes como coerção física devem ser sempre evitadas pelo profissional da segurança.
Além do uso da força, o estudo analisou o direito de realizar detenções pelos seguranças particulares. Ao todo foram examinados 48 acórdãos envolvendo prisão em flagrante e detenção de suspeitos realizada por vigilantes.
Os casos envolvendo restrição de liberdade foram divididos em duas espécies: prisão em flagrante e detenção para averiguação, que são aquelas situações em que o segurança aborda o suspeito na loja e o conduz coercitivamente para uma sala apartada. Todos esses casos envolvendo detenção para averiguação tratam de pedidos de danos morais promovidos por pessoas que foram detidas por seguranças no interior de estabelecimentos comerciais. Como podemos observar, essa postura foi considerada ilegal pelos tribunais em 22 dos 23 acórdãos analisados.
As chamadas prisões em flagrante acontecem quando as pessoas são detidas por seguranças particulares em flagrante e delito, encaminhadas à autoridade policial e presas. Dos 25 casos caracterizados desse modo, 20 eram processos criminais movidos em desfavor das pessoas autuadas em flagrante e não dos seguranças que as abordaram. De todos os processos criminais analisados, em nenhum deles a conduta dos vigilantes foi considerada ilegal pelos magistrados.
Os dados coletados na tabela 3 sugerem que os seguranças têm o direito de restringir a liberdade das pessoas apenas nas hipóteses em que a situação de flagrante delito estiver clara e inequívoca, nos casos de detenção para averiguação, contudo, o que se tem é mera suspeita, razão pela qual a condução do cliente nesses casos é, na esmagadora maioria das vezes, considerada ilegal e, portanto, não deve acontecer. De todo modo, os julgados que legitimam a prisão em flagrante feita por seguranças não dizem muito respeito dos fundamentos jurídico que contemplam aos vigilantes esse direito.
Embora esteja implícito nas decisões, sabemos que o dispositivo legal que concede não só aos vigilantes, mas a qualquer outro cidadão o direito de efetuar prisões em flagrante está previsto expressamente no art. 301 do Código Penal. Conforme o artigo, “Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito” (BRASIL, 1941).
O último direito que aqui abordaremos será o de “questionar”, normalmente utilizado pelo segurança contratado quando as suspeitas de um crime não configuram situação de flagrante e delito. Neste quesito, a enriquecedora pesquisa realizada pelo professor Cleber Silva Lopes apresenta alguns números interessantes para analisarmos as posições da jurisprudência face às situações que envolvem a abordagem de suspeitos em lojas.
Para examinar o direito de questionar, a pesquisa do autor supracitado utilizou 20 acórdãos proferidos em ações de danos morais movidas por clientes que foram questionados no interior de estabelecimentos comerciais. Dos 20 casos analisados, apenas 8 acórdãos julgaram o questionamento feito pelo segurança como sendo legal. Desses 8, apenas 4 sentenças fundamentaram as decisões.
As fundamentações presentes nas decisões que consideraram legais os questionamentos feitos pelos vigilantes levaram em conta, ao menos, dois fatores determinantes, quais sejam, (I) existência de elementos objetivos que fundamentem as suspeitas que motivaram o questionamento e (II) a maneira e as circunstâncias nas quais o questionamento é dirigido ao suspeito. Podemos verificar a incidência do primeiro item no fragmento de um acórdão extraído do estudo realizado pelo multicitado professor Cleber Silva Lopes.
Comprovadamente o réu adquiriu uma jaqueta na loja da ré e vestiu-a prontamente, dispensando sacola ou o empacotamento da mercadoria. Quando saia da loja, no entanto, de acordo com as duas testemunhas ouvidas, o segurança abordou-o solicitando-lhe o cupom fiscal e o acompanhando em seguida até o caixa, onde se confirmou a regularidade da compra (fls. 74 a 76). (…) Talvez se pudesse situar o dano moral na abordagem em si (…) Contudo, (…) era esperado que o segurança, naquela particular situação, agisse como ele de fato agiu. Afinal, o corriqueiro é o cliente retirar-se da loja com a roupa recém adquirida dentro de uma sacola ou empacotada e não a vestindo; qualquer pessoa mediana que se deparasse com alguém numa situação assim pensaria estar diante de alguma irregularidade e, tratando-se de um funcionário cuja função é vigiar, agiria abordando-o e pedindo-lhe explicações. Eventual defeito num contexto assim poderia, por sua vez, situar-se no excesso de atuação, coisa não provada pelo autor. (…) Desse modo, a sentença deve ser mantida integralmente (BRASIL, 2012c).
O acórdão acima, deixa claro que a suspeita do segurança que abordou o cliente estava fundada no fato de que a pessoa saiu da loja vestindo uma jaqueta vendida naquele estabelecimento comercial, algo que, embora não constitua nenhum ilícito penal, é, no mínimo, estranho aos demais procedimentos de compra corriqueiramente vivenciados pelo profissional.
As circunstâncias e o modo como questionamentos são dirigidos ao suspeito também é um dos critérios mais ponderados pelos tribunais para decidir acerca da legalidade das abordagens realizadas por seguranças, conforme se verifica do acórdão abaixo, extraído da mesma pesquisa mencionada acima.
[O apelante] afirma que o menor levantou a blusa sob coação, eis que o segurança do estabelecimento manifestou-se no seguinte sentido: ‘será que você não deixou de passar algum produto pela caixa registradora?’ (fls. 25) (…) No entanto, do conjunto probatório colhido toma-se inviável a conclusão de que houve o alegado dano moral (…) Em verdade, tudo aponta para um comportamento comum e corriqueiro, neste tipo de atividade desenvolvida pelos supermercados. A simples inquirição sobre eventual ocultação de produto pelo empregado da ré, sem a prática de qualquer ato de violência, sem prova da repreensão verbal exacerbada, ausência de demonstração de que a abordagem ocorreu na vista de outros clientes e que de fato tenha ocorrido revista pessoal no menor, não tem condão para gerar dano moral (BRASIL, 2011m).
Neste acórdão é possível verificar que os tribunais possuem uma preocupação especial com as abordagens exacerbadas que causam a exposição humilhante e vexatória do cliente questionado. Abordagens dessa natureza possuem alta potencialidade de se tornarem objeto de uma futura ação de danos morais. Do contrário, quando os questionamentos são realizados de maneira cordial e longe dos olhares dos demais clientes presentes no estabelecimento, os magistrados parecem admitir sua legalidade, desde que haja fundada suspeita que justifique a abordagem.
Ante todo exposto, fica claro que os direitos exercidos por profissionais contratados para defender o patrimônio são os mesmos disponíveis a qualquer outro cidadão. A grande diferença entre as duas classes é que os profissionais da segurança privada, ao contrário dos cidadãos comuns, exercem esse direito de maneira sistemática, uma vez que estes, em detrimento daqueles, estão expostos diariamente a situações que demandam o exercício do direito de questionar, dar voz de prisão e usar força física.
Por essa razão, conhecer os limites desses direitos é tão importante, não só para evitar de forma segura e legal as perdas ocasionadas por furtos e roubos, mas também para auxiliar o Estado e a segurança pública na garantia da ordem social.
Nesse contexto, resta a questão: como as empresas que possuem estabelecimentos comerciais devem proceder na orientação dos profissionais de segurança patrimonial contratados? Palestras ministradas in loco por especialistas que possuem vivência em casos similares e sólido conhecimento jurídico na área, visando orientações técnicas e práticas adequadas, não só aos seguranças profissionais, bem como aos empregados que exercem atividades nos estabelecimentos, são uma importante ferramenta no combate e prevenção a furtos, que poderá evitar prejuízos e otimizar a imagem corporativa.
Alex Gama é estudante de Direito e estagiário na área Penal Empresarial do escritório. O artigo foi elaborado com supervisão do advogado Rodrigo Coelho de Oliveira.